Alex Castro | Escritor |

O Brasil se considera uma nação boa e pacífica. Mas é só porque esqueceu ter sido a maior economia escravocrata de todos os tempos. Muitas vezes, o sono tranquilo não é consciência limpa: é falta de memória.

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A escravidão africana nas Américas foi talvez a maior tragédia da Era Moderna.

Estima-se que cerca de 11 milhões de pessoas tenham sido transportadas à força da África para as Américas. Dentre as muitas nações responsáveis por esse lucrativo tráfico, a maior foi Portugal. Dentre as muitas nações que compraram essas pessoas e que construíram sua riqueza em suas costas, a mais insaciável foi o Brasil. Dentre os muitos portos brasileiros que receberam essa massa humana desgraçada, o principal foi o Rio de Janeiro.

A História da escravidão africana nas Américas começa e termina lusófona: em 1441, Portugal traz para a Europa as primeiras pessoas escravizadas; em 1888, o Brasil torna-se o último país do continente a abolir o horror.

Um crime contra a humanidade que é, antes de tudo, lusófono, brasileiro, carioca.

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Na Alemanha, mesmo entre adolescentes cujos pais e mães nem eram nascidos durante a guerra, basta uma menção a nazismo, Holocausto ou Auschwitz para fazê-las abaixar a cabeça em silêncio, envergonhados, tristes.

Nós, no Brasil, se tivéssemos vergonha na cara, se tivéssemos um pouco mais de memória, faríamos a mesma coisa ao ouvir menções a senzala, navio-negreiro, escravidão.

Essa vergonha é nossa.

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No Rio de Janeiro, o principal porto de desembarque de pessoas escravizadas foi o Cais do Valongo, desativado e aterrado em 1843 por um Império que tinha vergonha da escravidão que lhe sustentava.
Hoje reformado e reembalado para turistas, esse cenário de horror foi inserido no recém-criado Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, ao lado de outras atrações como a Pedra do Sal, o Jardim Suspenso do Valongo e o Cemitério dos Pretos Novos — que apesar de cemitério, mais parecia um valão onde eram jogadas as vítimas da travessia atlântica.

Mas o que falta ao Brasil e ao Rio de Janeiro não são novas atrações turísticas, e sim espaços que promovam uma verdadeira compreensão dos horrores que aconteceram (e ainda acontecem) debaixo dos nossos olhos, nesse nosso chão, na nossa senzala, no nosso quartinho de empregadas, nas nossas comunidades.

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O Holocausto perpetrado pela Alemanha durante as décadas de 1930 e 1940 matou cerca de seis milhões de pessoas judias, um terço da população judaica mundial. Além de incontáveis milhões de outras pessoas.

Esse horror não deve nunca ser suavizado.

Mas não foi nem de longe o único horror perpetrado pela civilização europeia em sua longa história de horrores.

É impossível visitar lugares de tortura e morte como Auschwitz, Treblinka, Sobibor sem uma atitude de respeito e re exão, sem pensar na memória das centenas de milhares de pessoas que sofreram ali.
Auschwitz matou 1,1 milhão de pessoas; Treblinka, 900 mil; Sobibor, 200 mil.

Enquanto isso, o Brasil recebeu 4 milhões de pessoas escravizadas, sendo que um milhão só pelo Cais do Valongo, logo ali ao lado, no centro do Rio.

Por que nós, pessoas brasileiras, não temos a mesma atitude de respeito e reflexão ao visitar uma senzala, um engenho, um pelourinho?

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Estou no Cais do Valongo, tentando esquecer os números e somente imaginar como teria sido a experiência individual, una, indivisível, de pisar em terra firme ali, naquelas pedras, naquele chão.

Imagino que fui arrancado de minha família e de tudo que conheci; que atravessei o oceano cercado de pessoas agonizantes em um navio infecto; que não pude trazer nenhum objeto pessoal; que não sabia se jamais veria minha terra; que estava condenado a um castigo literalmente e potencialmente infinito, pois a escravidão não seria apenas minha, mas sim herdada por toda a minha descendência até o m dos tempos.

Imagino que o Rio de Janeiro, para mim, escravo recém- chegado, era um lugar desconhecido e cheio de horrores.

Era o porto onde colegas de viagem mais fracos vinham morrer. Era o chão onde começava a escravidão do meu corpo. Era minha primeira experiência nesse novo mundo onde seria cativo e explorado.

Imagino então que hoje o Rio de Janeiro continua sendo um lugar de horror para as pessoas que descendem de mim e dos meus, para as pessoas que têm o meu sangue e a minha cor, que são ao mesmo tempo a maior parte das vítimas de assassinato e também a maior parte da população carcerária, e ainda têm que ouvir que racismo não existe no Brasil.
Tudo isso aconteceu ontem, e continua acontecendo hoje.

A Polícia Militar não invade do mesmo jeito a cobertura do descendente do escravista e o barraco do descendente do escravo.

O passado, como uma pedra jogada na água, cria ondas concêntricas que repercutem no presente. O passado é o presente.

Alex Castro
É como um escritor de ficção. Parte importante do seu trabalho é mostrar às pessoas leitoras que tudo é ficção. A verdade não existe. Tem coisa mais ficcional do que o Jornal Nacional, do que um livro de História do Brasil, do que uma biogra a de celebridade?
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