Em São Luís, nos aproximamos de comunidades quilombolas nas quais se entrelaçam as lutas pela memória negra, pelo direito à terra e pelo respeito à diversidade de modos de vida frente às políticas desenvolvimentistas. A encantaria maranhense, que permeia todas as ações de resistência e está fortemente enraizada em práticas e religiões de matriz africana únicas no país, incorpora-se aos saberes centenários das parteiras encantadas, que são, em suas comunidades, igualmente responsáveis pelos processos de cura física e espiritual e pela passagem dos espíritos pelos ciclos de vida e morte.
Modos de Encantar
As terras de quilombos são territórios étnico-raciais com ocupação coletiva baseada na ancestralidade, no parentesco e em tradições culturais próprias. Elas expressam a resistência a diferentes formas de dominação e a sua regularização fundiária está garantida pela Constituição Federal de 1988.
A comunidade quilombola Santa Rosa dos Pretos (ou Santa Rosa do Barão) está localizada no município de Itapecuru-Mirim, no Maranhão. O acesso ao território se faz partindo da sede do município pela BR-222 até o entroncamento com a BR-135 e, nesta, percorrem-se 6km no sentido São Luís, que fica a 100km de distância. A Fazenda Santa Rosa pertenceu, até 1898, a Joaquim Raimundo Nunes Belfort (1820-1898), o Barão de Santa Rosa. Após a Abolição, em 1888, alguns ex-escravizados do Barão permaneceram trabalhando em sua propriedade, passando de cativos a agregados. Ao morrer, ele deixou a área ocupada por seu último centro de lavoura para usufruto perpétuo desses ex-escravizados e seus descendentes.
Por suas características mais notáveis, como a coesão, a pluralidade e a qualidade de suas manifestações culturais, a comunidade de Santa Rosa dos Pretos é uma espécie de referência ao se tratar de comunidades remanescentes de quilombos em termos regionais e nacionais. Em 2008, o Incra cadastrou 326 famílias e delimitou o território com 7.496,9184 hectares. Embora o processo de regularização esteja avançado, com a publicação da Portaria de Reconhecimento do Território em julho 2014 e dos decretos de desapropriação por interesse social dos imóveis que se sobrepuseram ao território nas duas últimas décadas do século passado, ainda há muito que lutar até que o título definitivo seja expedido em favor da comunidade.
Neste território, lideranças femininas lutam para manter a coesão das famílias e a posse de suas terras, contantemente alvos de especulação por parte de instâncias governamentais e pressões da mineradora Vale S.A. Dona Anacleta Pires da Silva, Dona Dalva Pires Belfort, Dona Severina Silva, Zica Pires da Silva e Josiane do Espírito Santo Pires da Silva são exemplos da força extraordinária destas mulheres em prol da manutenção do uso coletivo da terra e dos saberes da ancestralidade.
O Quilombo Santa Maria dos Pretos está localizado no mesmo munícipio e é formado por 5 povoados: Santa Maria dos Pretos, Piqui, Santa Joana, Morros e Mandioca. A formação do quilombo, à margens do Rio Itapecuru, começou na década de 1830, 50 anos antes da abolição formal da escravatura, quando a fazendeira Maria Rita Gomes Belfort transferiu, em testamento, parte de suas terras e equipamentos aos escravizados e seus descendentes. Nos dias de hoje, tal como no passado, os quilombolas dizem que seus antepassados receberam as terras como uma compensação pelo uso de sua mão de obra escravizada, não como uma doação ou um ato de bondade da antiga proprietária.
Com uma tradição de consciência sobre seu direito ao território ancestral e de resistência frente às sucessivas invasões e apropriações indevidas os quilombolas desses povoados reuniram-se para reivindicação da titulação de suas terras em 2003. Obtiveram o certificado de autorreconhecimento como comunidade remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares em 2004. Em 2014 tiveram 607,525 hectares titulados em nome da Comunidade Quilombola.
Os saberes terapêuticos a base de ervas, folhas, cascas e paus é tão importante e difundido entre os quilombos dessa região que o Sr. João Batista Souza Pereira, Pai de santo mestre de um terreiro de Mina em Santa Joana e também parteiro, foi convidado a participar em 2003 de um seminário promovido pela Unicef em São Luís. Na ocasião foram discutidas propostas de retomada e ampliação do uso da medicina fitoterápica nas comunidades quilombolas. Maria Catarina Sousa dos Santos é uma das parteiras em atividade em Santa Joana, onde os saberes das Encantadas rege os ensinamentos das tradições ligadas aos cuidados da saúde.
Tecendo um fio de pertencimento entre estes quilombos e a capital São Luís, Dona Elzita Viera Martins exerce importante liderança à frente do Terreiro Fé em Deus, há 50 anos. Nascida em 1934, foi iniciada no tambor de Mina por Mãe Denira Ferreira de Jesus e após a morte desta, assumiu a responsabilidade ou “obrigação” com as entidades espirituais, como ela diz, fundando o terreiro no bairro de Sacavém. A importância de Mãe Elzita está relacionada ao seu atendimento a comunidade do bairro como benzedeira. Enquanto líder religiosa, consegue chegar onde a medicina oficial não chega, através de sua prática que serve de apoio para as pessoas que recorrem ao seu conhecimento e buscam soluções para questões emocionais, psicológicas e espirituais, e confiam que suas palavras e seus gestos possuem o dom da cura.
Agosto de 2018